Karina Kuschnir

desenhos, textos, coisas

Dez truques da escrita num livro só

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“Para superar a prosa acadêmica, primeiro você precisa superar a pose acadêmica.” (C. Wright Mills, cit. por Becker, em Truques da escrita, p.57)

O melhor livro sobre escrita no mundo das ciências sociais está finalmente publicado em português! Foi uma delícia ajudar na edição do Truques da escrita: para começar e terminar teses, livros e artigos, do Howard S. Becker (editora Zahar, 2015, tradução de Denise Bottmann, e minha revisão técnica). É sempre bom ter uma desculpa para trocar e-mails com o Howie. Ele é desafiador, irreverente e simpático, mas não bonzinho!

Ano passado ele estava bem pessimista com a vida acadêmica… A primeira versão de prefácio para a edição brasileira veio nessa onda… Pedi please, por favor, dá para animar um pouquinho? Os estudantes brasileiros estão precisando de boas vibrações para terminar seus textos, artigos e teses! (E nem estávamos no cenário atual… ) Então veio uma nova versão, bem no tom do restante do livro, cheia de ideias e análises séria-mas-divertidas sobre nosso modo de lidar com a escrita na academia.

Aí vão dez dicas que pincei dentre os muitos segredos e truques apresentados na primeira metade do livro:

1) Você não está sozinho — Isso parece título de seriado de suspense, mas traduz uma ideia forte e simples da obra do Becker: a maioria dos nossos problemas são coletivos e não individuais. Escrever também. Você senta diante do computador e pensa: “Oh, meu deus, por que tudo que eu escrevo é horrível?” Bem-vindo. Todo mundo senta ao computador e escreve seis frases horríveis antes de escrever uma que preste. Você, o professor titular e o aluno brilhante de doutorado também. Perde-se muito tempo sofrendo nessa “privacidade socialmente organizada” da escrita. Melhor aceitar que escrever mal ou truncado faz parte de escrever. Ponto.

2) Rascunho sem censura — Escreva uma primeira versão do seu texto sem se preocupar com o que os outros vão achar, sem medo de rirem de você, sem apagar antes de começar. Querer um texto claro e coerente de primeira é uma das principais armadilhas para acabar não tendo texto algum. Confie, escreva um “rascunho confuso”, pois o objetivo é “fazer descobertas” e não publicar imediatamente (p.40).

3) Uma, duas, três, quatro, cinco revisões — Corte tudo que não sobreviver à pergunta: “Isso é realmente necessário?” Divida frases longas, substitua a voz passiva, simplifique, clareie. É o dever-de-casa básico dos cursos de redação, diz Becker. O problema é que os cientistas sociais se acostumaram a ter que escrever em prazos muito curtos, acabando por aceitar como normais textos que precisariam de várias revisões para serem realmente bons.

4) Crítica-amiga — Nem todo colega é um bom leitor, mas cultivar um círculo de amigos-leitores para suas versões preliminares ajuda a “desemaranhar as ideias”, melhorar a linguagem, incorporar referências, incluir comparações e até cortar mais, se necessário! Quando eles reclamarem que a prosa está confusa, a culpa é sua. Volte ao ponto 3!

5) Complexidade com simplicidade — Muitas pessoas confundem redação empolada e complicada com sofisticação intelectual. Becker abomina. Citando C. Wright Mills, ele defende: é possível ser compreensível e complexo, ser claro e também profundo. Subterfúgios retóricos servem para afirmar superioridade de status por parte dos acadêmicos (e é nesse contexto que aparece a citação do Mills que abre o post), como o sotaque que denuncia uma classe social.

6) O fim no começo — Ao terminar de escrever, pegue o triunfante parágrafo final e coloque-o no início do texto! Ou seja, escreva a introdução por último, quando já tiver clareza de onde seu trabalho irá chegar. Começar de forma evasiva não ajuda. Apresentar de cara as conclusões e o mapa do percurso de sua pesquisa é uma forma mais eficiente de fazer o leitor se interessar. Becker dá um exemplo ótimo de como fazer isso na p.83.

7) Escrever para pensar — Escrever o rascunho-sem-censura da forma mais livre possível, até sem recorrer a notas de campo e bibliografia, te leva a entender as ideias que estão na sua cabeça. É uma maneira de dar uma “forma física” ao seu pensamento! (p.86) Depois, avaliando estas páginas, é o caso de se perguntar: as ideias se repetem?; se complementam?; são frágeis? quantas/quais são realmente importantes?

8) A ordem dos dados importa? — Não há uma maneira única e certa de apresentar os dados de uma pesquisa. Há várias, e quase sempre a conclusão é a mesma, não importando o modo como você organiza os temas. Mas recortar, empilhar, marcar, fichar, fazer diagramas… tudo isso pode ajudar a construir o mapa do seu texto.

9) Falar dos problemas resolve todos os problemas — Em vez de eliminar um problema, escreva sobre ele. Simples assim. Qualquer transtorno ou situação penosa te ensina “algo que vale a pena aprender” (p.96). Mas para falar dos seus problemas, você precisa reconhecê-los… e admitir que o Senhor-Todo-Certinho não existe: “O remédio é experimentar e ver por si mesmo que não dói.” (p.100)

10) O trabalho é seu e o mundo não acabou — O autor existe! Bem-vindo, Você.

“…a solução para escrever algo (…) é escrever mesmo assim e, ao terminar, descobrir que o mundo não se acabou. Uma maneira de fazer isso é iludir a si mesmo e se forçar a pensar que o que você está escrevendo não tem importância e não faz diferença nenhuma – uma carta para um velho amigo, talvez. (…) A única maneira de começar a nadar é entrando na água.” (p. 181)

Essas dez dicas são só das primeiras 100 páginas do livro! (Exceto a última, ok, não reparem.) Como o próprio Becker afirma que é “preguiçoso” e não gosta de trabalhar, também me sinto à vontade para parar no meio. Talvez eu faça um segundo post sobre o livro, talvez não… Falta tanta coisa boa: como editar, como enfrentar a bibliografia, como descobrir que o texto está pronto… Corram pra ler, é muito mais divertido do que eu escrevi!

**Aviso: é correto informar que o livro faz parte da Coleção Antropologia Social (dirigida por mim) e que recebo uma pequenina porcentagem das vendas. Mas não foi por isso que escrevi o post, claro.

** PS: Depois do post publicado, soube dessa resenha muito legal feita pela Julia Polessa, antes da edição brasileira existir. Vejam lá!

E para quem se interessa pelo mundo acadêmico, o blog tem outros textos sobre minhas experiências… na escrita de projetos, nas defesas de tese, nas dores de não passar, na falta de tempo, no ensino de antropologia e desenho, no aprender a desescrever, nas agruras de ser doutoranda, na vida dos alunos, no sorriso do professor, nas lições da vida acadêmica e nas muitas saudades de Oxford 1, 2, 3 e 4!

* 5 Coisas impossivelmente-legais-bonitas-interessantes-hilárias-ou-dignas-de-nota da semana:

* Descobri o blog A Vida Pública da Sociologia, escrito pelo João Marcelo Maia. Li tudo de uma vez só, adorei e entupi o João com comentários. Um lugar para respirar ar fresco e inteligência na vida acadêmica!

* Médico: — Como vai o Antônio? Teve febre?
Eu: — Não, ao contrário. Estou até preocupada:  o termômetro não ultrapassa 35 graus e pouco.
Médico — Ah, é “febre de sapo”!

* Seriado Elementary (Netflix): o Sherlock Holmes moderno explica: “The danger with rule books, Watson, is that they offer the illusion that leading a moral life is a simple undertaking, that the world exists in black and white. Welcome to the greys!”

* Saiu em português um dos melhores livros autobiográficos que já li: Sobre a escrita: a arte em memórias, de Stephen King.

* Coincidência simpática: este é 80º post e o blog acaba de ultrapassar 80.000 visitas!

* Sobre o desenho: Fiz o desenho achando que ia ser um rascunho, mas acabou virando a versão final. Lápis e caneta nanquim 0.3 Unipin sobre o verso de um papel Canson Aquarelle. Aguadas com waterbrush Kuretake (large) e tintas de aquarela misturando cinzas com as cores Burn Sienna, French Ultramarine, Neutral Tint e um pouquinho de Turquoise para os azuis claros. No chão do escritório imaginário, os rabiscos são as letras e palavras que o Becker nos sugere cortar sem piedade. Quem sabe um dia eu não viro ilustradora de verdade e publico um desses na Piauí?

Você acabou de ler “Dez truques da escrita num livro só“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! 🙂

Como citar: Kuschnir, Karina. 2015. “Dez truques da escrita num livro só”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url “http://wp.me/p42zgF-ft“. Acesso em [dd/mm/aaaa].

48 pensamentos sobre “Dez truques da escrita num livro só

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  3. Vou comprar o livro. Gostei das dicas,mas para .mim preciso deixar fluir maus meus pensamentos e ideias.

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  4. Sua escrita é sempre um conforto para entender e voltar a sentir o prazer de trabalhar com a escrita e no mundo acadêmico. Suas indicações de leituras também são fantásticas, vão entrar todas na minha listinha. Obrigada.

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  9. Parabéns pelo blog e pelo post!!!

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  10. Olá, Karina! Obrigada por ter dado um refresco na minha “alma de escritora”. Comecei o mestrado no semestre passado, mas foi muito difícil, pois tinha acabado de perder meus pais. Enfim, agora que realmente estou começando a escrever e, sinceramente, estava sem ar, ou melhor, fôlego de tanto bloqueio e hesitação! Seu post renovou minhas forças! Comprarei o livro e já me escrevi no seu blog. Agora estou sentindo “um pouco de possível!” Rs Mais uma vez obrigada!!! Bjs

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  11. Karina, obrigada por compartilhar ! Acredito que será um livro que me ajudará muito. Acabou de chegar pelo correio, ansiosa para começar a ler. Mas primeiro voltei aqui agradecer a indicação, junto comprei também outras indicações suas: Sobre a escrita, e Um teto todo seu..
    Obs: Descobri seu blog no ano passado, melhor descoberta do ano!!! Eu estava no último ano do Mestrado, agora estou iniciando o Doutorado em Psicologia…você não imagina o quanto o seu blog, sua escrita, seus desenhos me ajudam neste mundo acadêmico e também na vida!
    Um forte abraço
    Flávia

    Curtido por 1 pessoa

    • Viva, Flavia, muito obrigada!! Fico na maior alegria de saber que contribuí para suas criações e escritas. Desejo que você tenha tranquilidade e curta bastante seu doutorado; não esqueça de pegar sol e fazer exercícios para manter a saúde em dia. Beijinhos! ♡

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  12. É cada maravilha que descubro! Seu blog é uma dessas maravilhas, parabéns!

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  17. Eu não sei como achei teu blog, serio! mas estou encantada. Obrigada!

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  20. Seu blog é um achado! Gostei. Quanto ao livro, pretendo adquiri-lo em breve.

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  23. Ótimas dicas. Obrigada!

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  25. NOVESFORA as dicas e a sugestão, lhe digo: Adorei a ilustração! 😉

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  27. Realmente essa degustação faz com que fiquemos ansiosos para ler o livro. Muito bom mesmo.

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  28. Karina, estou adorando seu blog. Sou estudante de Terapia Ocupacional, me formo no próximo período e meu orientador de tcc indicou-me um de seus posts, o de dicas sobre a escrita, o qual está sendo muito valioso para este momento e, com certeza, para o resto de minha vida, já que quero seguir a carreira acadêmica. Muito obrigada! ;D

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    • Que legal seu comentário, Ana! Desejo todo sucesso no seu TCC e na futura carreira acadêmica também — acho a sua escolha pela Terapia Ocupacional muito bonita. Bem-vinda aqui no blog!

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  29. Muito bom, Karina!
    Bj
    Glaucia

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  30. Estou muitissimo feliz que este livro finalmente ganhou uma versao brasileira, Karina! Parabens! Eh o que salvou minha sanidade durante minha tese. Onde podemos comprar?

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    • Que ótimo saber!! O livro está à venda nas livrarias normais e também nas virtuais (como da Travessa e Cultura)! a Zahar é bem distribuída em todo país. Mas se tiver dificuldade de achar, avise!

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  31. Opa, valeu pela lembrança, Karina! Beijo.

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  32. Estou escrevendo meu projeto de mestrado pra apresentar. Esse artigo veio em ótima hora! Muito obrigado, fiquei até interessado em ter o livro 🙂

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  33. Excelente síntese, Karina, estou ansioso para ler o livro!

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  34. Karina, obrigada pelo texto e pela dica do livro. Estou trabalhando novamente na área acadêmica e assistindo aulas como ouvinte no doutorado em Museologia no MAST-UNIRIO. Que dicas preciosas para mim e para meus colegas! Abs ; ) R@

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  35. Que beleza! Obrigado pela indicação e pelo post. Muitas informações dignas na sua página.
    Saudações!

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