Karina Kuschnir

desenhos, textos, coisas

Medo do medo do medo (e um pouco de coragem)

19 Comentários

Uma das vantagens de criar filhos é que você descobre a resposta de quase todos os problemas da vida nos livros infantis. Lá estão muitas das emoções do mundo, não importa quão estranhas.

Uma das mais frequentes é o medo. Medo de escorpião, de monstro, de mar, de bicho, de gente, de crescer… Aqui em casa, temos uma coleção de livros sobre o tema. Um dos meus favoritos é “Chapeuzinho Amarelo”, escrito em prosa rimada:

“Não tomava sopa pra não ensopar.
Não tomava banho pra não descolar.
Não falava nada pra não engasgar.
Não ficava em pé com medo de cair.
Então vivia parada,
deitada, mas sem dormir,
com medo de pesadelo.”

E de tantos medos, Chapeuzinho Amarelo tinha um maior que todos: medo de lobo:

“Mesmo assim a Chapeuzinho
tinha cada vez mais medo
do medo do medo do medo
de um dia encontrar um LOBO.
Um LOBO que não existia”

Um dia, a menina encontrou um lobo de verdade — desses assustadores, com boca e dentes gigantes — e o efeito foi surpreendente:

“Mas o engraçado é que,
assim que encontrou o LOBO,
a Chapeuzinho Amarelo
foi perdendo aquele medo,
o medo do medo do medo,
de um dia encontrar um LOBO.
Foi passando aquele medo
do medo que tinha do LOBO.
Foi ficando só com um pouco
de medo daquele lobo.
Depois acabou o medo
e ela ficou só com o lobo.”
(…)
“O lobo ficou chateado.”

O lobo se irritou. Que audácia! Insistia em assustar a menina, gritando que era um LOBO! E, de tanto ouvir aquela palavra — lo-bo-lo-bo-lo-bo-lo…–, Chapeuzinho pensou…

“E o lobo parado assim
do jeito que o lobo estava
já não era mais um LO-BO.
Era um BO-LO.
Um bolo de lobo fofo,
tremendo que nem pudim,
com medo da Chapeuzim.
Com medo de ser comido
com vela e tudo, inteirim.

E assim seguiu a menina, descobrindo que prefere bolo de chocolate (e não de lobo), sem medo de carrapato, de chuva, de brincar ou de se machucar.

Lembrei desse livro porque, depois de tanta auto-exposição online (aqui e aqui), acabei recebendo muitas mensagens sobre medos da vida acadêmica: medo de escrever, medo de falar, medo de não conhecer teorias suficientes, medo de metodologia, medo de mudar de orientador, medo de trancar o mestrado, medo de continuar, medo de terminar, medo de banca, medo de não conseguir um trabalho, medo de ensinar, medo de nunca publicar…

Mas o medo mais frequente é o de “descobrirem que sou uma fraude”. Não é tanto o medo de “ser uma fraude” (porque infelizmente muita gente já se acha uma fraude, já acha que a vida acadêmica não é pra si etc.). O medo é de algo que confirme isso, desde não conseguir terminar um TCC até não passar num concurso, ou ter seu artigo recusado.

Numa aula de metodologia em que participei recentemente, como convidada, várias alunas mencionaram que a parte mais impactante do livro Truques da Escrita foi o capítulo “Riscos”, escrito pela Pamela Richards, ex-aluna do Becker. É um depoimento sobre o medo de ser considerada uma fraude, o medo de se expor às críticas, de não ser boa o suficiente, de não ser considerada inteligente, de não ter legitimidade para ser considerada uma profissional da área etc. Porém, o mais interessante é que a Pamela aponta as consequências de se sentir assim: quem tem muito medo não se arrisca, não se expõe, “não fala nada pra não engasgar”, como Chapeuzinho Amarelo, antes de encontrar o lobo. Nas palavras da autora:

“Esse problema da confiança é crítico porrque desgasta o tipo de liberdade emocional e intelectual de que todos nós precisamos para conseguir criar.” (Pamela Richards)

Ao mesmo tempo em que coloca o dedo na ferida, Pamela aponta caminhos para se fortalecer: olhar para trás (vendo o que te levou a conquistar o lugar onde você se encontra); olhar para frente (conversando com amigos sobre o que você pretente com sua pesquisa). É preciso encarar o lobo da escrita:

“…quanto mais você escreve, mais fácil fica, porque com a prática você aprende que não é tao arriscado quanto temia. (…)
…estou aprendendo, ao passar mais tempo escrevendo, que vale a pena correr esses riscos.” (Pamela Richards)

É isso, pessoal. Talvez todos esses medos sejam como aquelas pequenas faunas caseiras, tão apreciadas pelas crianças, como diz um menino, em outro livro:

“Gosto de você, aranha, porque você não pica nem arranha.”

Ah, antes de me despedir: por que essa imagem ilustrando o post? Porque achei maravilhosa a liberdade dessa mulher, vestida do seu jeito, barriga de fora, sutiã aparecendo, carteira dourada debaixo do braço, sandália confortável nos pés, como se dissesse pro mundo: “meu corpo, minhas regras”. Assim arrisquei desenhá-la também, aceitando as distorções da rapidez, colorindo com as limitações que o meu papel permitia, mas sentindo uma profunda gratidão por ela existir e por eu mesma me permitir arriscar. Às vezes é só disso que precisamos: ter menos medo e sair pra brincar.

Sobre as citações: Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, ilustrado por Ziraldo (Ed. José Olympio). Truques da escrita, de Howard S. Becker (Ed. Zahar, trad. Denise Bottmann). Os trechos citados são todos do capítulo 6, escrito quase inteiramente por Pamela Richards, ex-aluna do Becker. A história da aranha, diversos autores (ed. Ática, série Lelé da Cuca, trad. Luciano V. Machado).

Sobre a imagem: Esse desenho é o número 15 do Projeto 50 Pessoas que comecei no final do ano passado e interrompi na metade devido à pandemia. Linhas feitas com canetinha de nanquim permanente Pigma Micron (0,05) por observação rápida de foto tirada por mim pela janela do ônibus em um caderninho Hahnemühle. Aquarelas acrescentadas em casa com essa paleta. Para mais detalhes, ver a página sobre os materiais que utilizo.

Você acabou de ler “Medo do medo do medo (e um pouco de coragem)“, escrito e ilustrado por Karina Kuschnir e publicado em karinakuschnir.wordpress.com. Se quiser receber automaticamente novos posts, vá para a página inicial do blog e insira seu e-mail na caixa lateral à direita. Se estiver no celular, a caixa de inscrição está no rodapé. Obrigada! ☺

Como citar: Kuschnir, Karina. 2020. “Medo do medo do medo (e um pouco de coragem)”, Publicado em karinakuschnir.wordpress.com, url: https://wp.me/p42zgF-3Rk. Acesso em [dd/mm/aaaa].

19 pensamentos sobre “Medo do medo do medo (e um pouco de coragem)

  1. Pingback: De mim, recap | Karina Kuschnir

  2. Já entrei para pegar o calendário 2021!!! Melhor calendário da vida 😄

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  3. Havia um tempo que não te visitava aqui…mas já colhi algo permanente bom pro meu dia! Acredito que esse medo é familiar pra muitos…obrigada pela partilha

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  4. Adorei!

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  5. Kau, meus filhos qdo pequenos gostavam tanto do “chapeuzinho amarelo” que, de tanto eu ler eles já sabiam as falas de cor! É muito lindo e simbólico!

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  6. Kau, é uma alegria imensa ler seus posts. Um carinho no coração. bjs

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  7. Ual… obrigada… estou aqui paralisada em casa com medo do medo do medo de escrever, de apresentar meus resultados… medo de não ser boa o suficiente… esse post era tudo que precisava pra sacudir a poeira e ir em frente com medo mesmo … 😉

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  8. Maravilhosa! São as pílulas diárias que preciso para não desistir. Mas que medo de ser uma fraude 😢

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  9. Quantos medos que já nos paralisaram? Mas também quantos medos já enfrentamos e vimos que não eram tão grandes assim? Nessa vida o que importa é mesmo a coragem como diz Guimarães Rosa. Viva Karina e sua coragem de ser o que é e compartilhar conosco seu mundo de verdade. Gratidão!

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  10. Kauzinha, Está lindo!! Você é incrível!! A minha amiga Monica, ex Antonio Bernardo, iria hoje fazer a primeira Live dela para talvez seguir um novo caminho de trabalho, me disse que leu o seu post bem cedo e que caiu como uma luva para ela! Eu sou a rainha do medo, fico congelada para emitir opiniões na frente das pessoas, isso desde pequena, trauma de infância! Como você escreve bem e é criativa!! Parabéns, te amo!! Beijinhos, Mamãe

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  11. Muito obrigada por me relembrar deste livro! Estou exatamente nesse estágio: medo de ser uma fraude. Não lembrava da história desse livro, que adoro e reli ano passado. Talvez o medo de descobrir o porquê eu tenho medo tenha me feito esquecer essa delícia de livro. ❤

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  12. Perfeito!

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  13. Passando aqui para deixar registrado o quanto te ouvir (na banquinha do avesso) me emocionou. Tempos de pandemia,confinamento, maternidade 24h e de escrita para minha qualificação do doutorado tem trazido peso ao cotidiano. Ouvir você falando do desejo e da emoção de ser mãe e como isso faz parte de você, me fez perceber que esse meu lado de mãe – tenho dois filhos queridos – estava colocado (por mim, dentro dessa estrutura que vivemos) como um adversário ou concorrente da vida acadêmica.
    Não é isso o quero. Nem o que planejei. Eles, meus filhotes, fazem parte de mim.
    Obrigada pela partilha, pelo meu despertar.

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  14. Texto lindo, reconfortante. Percebo que meu medo oscilou; terminado o doutorado o medo é do futuro – mais especificamente uma espécie de “e agora, chegarás lá?”. Que doido.

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  15. Que lindeza esta chapeuzinha amarela, baita inspiração! E sim, concordo que os livros infantis são mega potentes para lançar luz para muitas de nossas questões. Lembro até hoje do impacto que me causou “O equilibrista” em uma sessão de terapia. Aliás, tem desenhos lindos também, dá para ver aqui: https://www.youtube.com/watch?v=qsxskA1KPoY

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  16. Maravilhoso!💐

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  17. Vivo coberta de medos mesmo tendo provas que consigo.
    Lindo texto Karina!

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  18. 👏👏👏👏👏👏👏 amo seus textos!!

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  19. Maravilhoso! 👏👏

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